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Estágio Probatório e a Precarização do Serviço Público sob a Racionalidade Neoliberal

Estágio Probatório e a Precarização do Serviço Público sob a Racionalidade Neoliberal

Data: 10 de outubro de 2025

Historicamente, o estágio probatório foi concebido como um período de integração e avaliação do novo servidor ao serviço público, contudo, nos últimos anos vem sofrendo profundas transformações, culminando nas alterações normativas recentes que o converteram, em nossa avaliação, em instrumento de disciplinamento e controle. Além disso, as discussões em torno da PEC 32/2020 (Reforma Administrativa) têm intensificado o cenário de pressão e preocupação do conjunto dos funcionalismo, daqueles/as que intencionam entrar no serviço público e, por fim, de todos/as aqueles/as que se utilizam dos serviços públicos, ou seja, do conjunto da população brasileira.

Sob o argumento da “eficiência” e “modernização”, busca-se implementar uma lógica gerencial que concorre para esvaziar o caráter formativo desta fase importante na vida funcional, substituindo-o por mecanismos de avaliação de carácter quantitativo e de viés excludente. Tal transformação serve a um projeto neoliberal mais amplo de precarização do serviço público e fragmentação da classe trabalhadora que atua no serviço público, comprometendo não apenas os direitos dos servidores, mas a própria qualidade dos serviços prestados à população.

Como sabemos, o estágio probatório constitui-se tradicionalmente como período de “avaliação, adaptação e treinamento em efetivo exercício” para os/as servidores/as aprovados/as em concurso público. A natureza desse processo deveria ser integral e formativa.

No entanto, com a guinada que o Estado brasileiro vem assumindo desde a década de 1990, por meio da Reforma Gerencial do Estado, com a lógica e mecanismos de controle, nos moldes apresentados por Luiz Carlos Bresser-Pereira (1997), tem se alterado continua e aceleradamente a natureza desse processo, com destaque para as mudanças implementadas pelo Decreto nº 12.374/2025. O novo modelo introduz 8 (oito) critérios de avaliação quantificáveis, incluindo “comprometimento institucional”, “orientação para resultados” e “capacidade de trabalho em equipe”; “Avaliações semestrais” obrigatórias durante os 3 (três) anos de estágio; Sistema de notas com escores de 1 (um) a 5 (cinco), com possibilidade de desligamento automático por desempenho insuficiente. Estabelece também maior poder discricionário das chefias imediatas no processo avaliativo, visto que o rol de situações que suspende a contagem de tempo do estágio não é taxativa, mas exemplificativa, garantindo às unidades administrativas poder para avaliar se as licenças, ausências e afastamentos decorrem de situação específica de cada servidor.

Em minha avaliação, estes mecanismos convertem o estágio probatório em ferramenta de seleção excludente, distanciando-se de sua função formativa original. O/A servidor/a será submetido a uma lógica de constante mensuração de performance, característica da racionalidade neoliberal aplicada ao setor público, que transforma direitos sociais em produtos.

Cabe ressaltar também nesse movimento, que as alterações colaboram para o esvaziamento da dimensão coletiva dos/as trabalhadores/as que atuam no serviço público, visto que a implementação de avaliações individualizadas de desempenho fragiliza a solidariedade de classe no interior do serviço público. São notórias, em nossos espaços de trabalho, situações em que servidores recém concursados sentem-se fragilizados, no momento de aderir aos movimentos de luta e reivindicações por seus próprios de direitos, por medo de sofrerem retaliações. Esta é uma situação que leva a fragmentação da organização e é funcional ao projeto neoliberal, que, como aponta Pochmann (2021), resulta no “ocultamento da percepção de classe social e o aprofundamento da precarização” .

No aspecto que tange de forma mais direta ao Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), foi elaborada no segundo semestre de 2025, uma minuta de resolução que visa adequar as regulamentações internas aos estabelecidos no novo decreto e instruções normativas do governo federal. Afetando diretamente direitos dos docentes da rede federal de educação, concorrendo para a desvalorização da atividade acadêmica, posto que a alteração normativa de fevereiro de 2025, passa a considerar a licença para pós-graduação stricto sensu, como afastamento impeditivo da contagem do estágio probatório.

Esta mudança representa um duro golpe à carreira do magistério federal e desconsidera o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e o princípio da formação continuada, uma vez que penaliza os/as docentes recém concursados que buscam qualificação em nível de mestrado e doutorado; compromete o futuro da pesquisa na rede, especialmente da rede técnica e tecnológica, visto que muitos/as docentes que acessam a carreira EBTT, por meio do concurso publico, têm apenas graduação e especialização, considerando o critério de seleção previsto na maioria dos editais. Por fim, a liberação para qualificação já ocorre quando há interesse da administração, não apenas por vontade individual do/a servidor/a.

Vale ressaltar, também que nos processos de avaliação e credenciamento dos cursos junto ao Ministério da Educação, são exigidos dos Institutos o maior número de docentes na condição de mestres e doutores, mas a partir desse impedimento, essas instituições de ensino podem ter suas notas rebaixadas, nos processos avaliativos.

Essas alterações representam uma contradição com a própria função social das Universidades e dos Institutos Federais de Educação, visto que ao desincentivar a formação continuada no período inicial da carreira, o Estado brasileiro nega a especificidade e a própria natureza do trabalho docente e subordina a atividade acadêmica a lógicas produtivistas imediatistas. A medida ignora que a qualificação docente é estruturante para a qualidade da educação pública e para a produção de conhecimento científico nacional. Trata-se de um claro exemplo de como a racionalidade gerencial, ao buscar eficiência de curto prazo, compromete funções essenciais do Estado.

Além das alterações que atingem a carreira do magistério federal, cabe destacar também que à licença por motivo de acidente em serviço, está sob ataque, visto que de acordo com a alínea “d”, inciso VIII, art. 102 da Lei nº 8.112/90, além das ausências ao serviço previstas no art. 97, são considerados como de efetivo exercício os afastamentos “por motivo de acidente em serviço ou doença profissional”, mas a normativa de fevereiro de 2025, passa a considerar esta licença, como afastamento impeditivo da contagem do estágio probatório.

Cabe reforçar que o art. 6º da Lei nº 8.112/1990, ao assegurar a proteção à saúde do servidor, e o art. 117, XV, ao proibir o abuso de poder hierárquico, impõem ao gestor público o dever de prevenir práticas laborais que comprometam a integridade física e mental dos servidores. Além disso, o art. 230 da mesma lei e o Decreto nº 7.602/2011 (Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho) reforçam a responsabilidade institucional pela prevenção de doenças ocupacionais.

Ainda sobre a saúde dos/as servidores/as públicos, dados do Ministério da Saúde (2024), indicam que os transtornos mentais e comportamentais (CID-10 F00–F99) representam cerca de 37% dos afastamentos de servidores públicos federais, superando doenças osteomusculares. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a depressão e a ansiedade custam anualmente à economia global mais de 1 trilhão de dólares em perda de produtividade.

No Brasil, mais de 600 mil servidores públicos federais se afastaram temporariamente do trabalho, em 2023, segundo dados do Painel Estatístico de Pessoal da União. Esse número representa uma parcela significativa dos 1.267.228 servidores públicos federais registrados no no Brasil. Esses afastamentos têm impacto direto sobre o erário. A Controladoria-Geral da União (CGU) estimou em 2022 que o custo médio anual de reposição temporária e perícias médicas de funcionários do Executivo Federal afastados por problemas de saúde mental é de aproximadamente R$ 1,8 bilhão, com transtornos de humor e ansiedade sendo os maiores responsáveis por esses custos (CGU/2022). Contra o discurso que apresenta a estabilidade como “privilégio”, é fundamental reafirmá-la como garantia de continuidade dos serviços públicos e proteção contra ingerências políticas. A estabilidade deve ser entendida como uma proteção ao Estado e ao interesse público contra ingerências políticas, garantindo a continuidade dos serviços públicos, mesmo em cenários de troca de governo. Esta garantia assegura que servidores/as possam cumprir suas funções com independência técnica e isenção política.

Pesquisas da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU) indicam que mais de 60% das operações de combate à corrupção iniciaram-se a partir de denúncias internas de servidores estáveis, amparadas em programas de integridade e na Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção).

Assim, defender a estabilidade como garantia de independência técnica e a valorização das carreiras públicas é, em última instância, defender um Estado capaz de enfrentar as profundas desigualdades brasileiras e garantir direitos fundamentais a toda a população. A luta contra a precarização do serviço público é, portanto, não apenas uma defesa corporativa de direitos trabalhistas, mas uma batalha decisiva pelo projeto de sociedade que queremos construir – mais igualitário, democrático e justo.

Diante do exposto, consideramos fundamental que o Conselho Superior do IFES se posicione no sentido de garantir os dispositivos de proteção à saúde e estabilidade previstos nos arts. 6º, 41 e 230 da Lei nº 8.112/90; incluindo em suas resoluções e normativas internas cláusulas de prevenção ao assédio institucional e à sobrecarga laboral durante o estágio probatório; promova ações de saúde mental e gestão humanizada em conformidade com o Decreto nº 9.991/2019 (Política de Desenvolvimento de Pessoas) e a Resolução CONSUP/IFES nº 334/2025, que regulamenta o acolhimento de vítimas de assédio e discriminação; garanta a proteção funcional e administrativa de servidores que denunciem irregularidades, nos termos da Lei nº 13.608/2018 e do Decreto nº 10.153/2019, assegurando confidencialidade e integridade; e considere, em qualquer deliberação, que o fortalecimento da estabilidade é instrumento de preservação da probidade administrativa e da eficiência do gasto público, sendo incompatível com políticas que ampliem a precarização ou o medo institucional. Visto que na nossa compreensão, validar normativas como essa, que visam a precarizar o serviço público, significa colocar em risco, para citar um exemplo, a nossa própria posição, enquanto conselheiros independentes, escolhidos em nossas bases, e legalmente precisamos representar.

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