Utopias e dramas do Xingu
Data: 12 de abril de 2012
Sonho dos irmãos Villas Boas chega às telas em momento de retrocesso em políticas
O filme “Xingu”, de Cao Hamburger (O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias), chega às telas em um momento de retrocesso nas políticas indígenas. No mês em que é celebrado o dia do índio, pouco há para se comemorar. O Parque Indígena, criado pelos irmãos Villas Boas, cenário do filme, vive às voltas com diferentes ameaças, e em outras aldeias espalhadas pelo país, o clima é de medo, provocado por invasões do garimpo, pela ameaça constante do narcotráfico e pela violenta disputa pelas terras com fazendeiros fortemente armados.
O avanço da política indigenista, expresso na saga dos irmãos Villas Boas, e bem retratado no filme, corre sério risco de ir por terra. No caso especifico do Parque Indígena do Xingu, área de 2, 6 milhões de hectares no Mato Grosso, uma nova ‘transamazônica’ tira o sono de indígenas. A construção da usina hidrelétrica Belo Monte, enfiada goela abaixo dos povos xinguanos, figura hoje ao lado de outros problemas mais antigos – que não param de crescer – como o avanço de território desmatado e das culturas de grão e da pecuária.
“Estamos correndo o risco de andar para trás não só nas políticas indígenas, mas também nas questões ambientais”, afirmou o diretor Cao Hamburger, pouco antes da exibição de Xingu para a imprensa e convidados, em São Paulo. “Se a sociedade não se tocar, vamos ficar pior que caranguejo”, ironiza o diretor. Ele acredita que o filme pode iluminar um pouco a questão nesse sentido. “Contamos uma história que se passou há cinquenta anos, mas que é muito atual e urgente.”
O filme faz um justo resgate da historia de três brasileiros de primeira grandeza que decidirem botar o pé na estrada, inicialmente sem saber ao certo pra onde, nem por que. A viagem em questão é a Expedição Roncador-Xingu que, em 1943, partiu de São Paulo rumo a regiões inóspitas do Brasil Central. Seus nomes: Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas. Impulsionados, em princípio, pelo desejo de aventuras, descortinaram o misterioso mundo dos povos indígenas. Um mundo que, como poucos, eles compreenderam e ajudaram a preservar. E ao qual, apaixonados, dedicaram – de corpo e alma – suas vidas.
Abraço da morte
“É uma joia pública preservada”, defende o ator Caio Blat, que vive no longa o caçula, Leonardo Villas Boas. “Eles previram o avanço da destruição que ameaçaria os povos da região, chamavam isso de ‘abraço da morte’, o que, aliás, já está acontecendo, todo o entorno do parque já está devastado”, ressalta o ator. Ele também acredita que o filme chega numa boa hora. “Vamos levantar esse debate, levar esse tema para as casas das pessoas, escolas, e tentar reverter essa situação com a participação da sociedade”. Para o ator, quadro é dramática. “O parque está no seu limite, desmatamentos chegaram perto demais e impactos da usina Belo Monte não estão claros.” O ator aproveita pra chamar a atenção sobre questões ambientais. “Código florestal que está sendo aprovado é vergonhoso.”
A atriz Maria Flor, que vive o papel de Marina, a viúva de Orlando Villas Boas, e que passou vários dias no parque indígena, conta ter se impressionado ao ver como os índios ainda continuam vivendo dentro da própria cultura, mas vê com ressalvas a ideia de preservação cultural. “É inevitável nossa cultura entrar ali, e essa mistura é muito interessante, eles querem isso, ter ipod, máquina fotográfica, é legítimo, e o bacana é que ao mesmo tempo permanecem ligados às tradições.”
“Falta outro ‘Orlando’ pra botar ordem na casa”
Verdadeira celebridade na noite da pré-estreia do filme em São Paulo, Marina elogiou o olhar ‘sensível e competente’ do diretor Cao Hamburger. Sobre a atual situação de fragilidade de aldeias, ela lamenta. “Falta o interesse que já existiu na questão indígena”, em outras palavras, a viúva quis dizer que falta outro ‘Orlando’ pra botar ordem na casa, ou na aldeia.
Também marcou presença na pré-estreia de Xingu, ao lado da sempre bela, Bruna Lombardi, o eterno Aritana da TV, o ator Carlos Alberto Riccelli, que teve a ajuda dos sertanistas Orlando e Claudio Villas Boas para a composição de seu personagem, o líder indígena do Alto Xingu, Aritana Yawalapiti, em 1978, na saudosa TV Tupi. “Eles foram excelentes professores, me ensinaram um pouco dos costumes e do idioma”, diz o ator, que vive hoje em São Paulo e em Miami. Bruna acrescenta um detalhe importante. “Para nós tem um significado todo especial, foi no Xingu que nos conhecemos.”
O ator que acabava de chegar do Fórum de Sustentabilidade de Manaus, também ergueu a bandeira ambiental. Ele citou uma petição, da ONG Greenpeace que propõe ‘desmatamento zero’. “Pra transformar isso em lei é preciso 1 milhão e meio de assinaturas.” Ele afirma que a exemplo do que aconteceu com a Lei da Ficha Limpa’, que teve expressiva participação da sociedade, essa proposta pode fazer mais do que a atual revisão do código florestal, onde, segundo ele, ‘todo mundo deu palpite, mexeu onde não precisava e tudo para salvar quem deveria ser punido.”
Para o cineasta Fernando Meirelles (um dos diretores da O2 Filmes, produtora de Xingu), o longa, dirigido por Hamburger, questiona o que é progresso. Ele se refere a uma cena em que Felipe Camargo, na pele de Orlando, arremata o assunto afirmando que “progresso não interessa nem pra gente.” Questionado sobre porque não é mencionada a construção da Belo Monte, o diretor se defende dizendo que as imagens da Transamazônica no final do filme já deixam implícita a questão. Mas afirma ser contra a obra, imposta sem os devidos estudos de impacto. “Serão dezessete usinas ao longo do rio para produzir uma energia elétrica que não precisamos, para fazer alumínio para a China”, conclui.
Histórias de pajés
Certamente, o mais fantástico nas aventuras de Orlando Villas Boas foi seu encontro com o fascinante universo da cultura indígena. Desta mesma fonte, ele resgatou outro tesouro, as histórias de poderosos pajés, autores de feitos mirabolantes. A enfermeira Marina Villas Bôas, esposa do sertanista, que viveu e trabalhou com ele durante 12 anos no Xingu, conhece uma porção delas. Muitas, porém, trazem pitadas de um recheio fantástico, que ela própria reconhece ‘precisar muita fé para acreditar’. O que não impede o fascínio pelo universo indígena, motivo que a fez abandonar a vida segura em São Paulo e seguir rumo ao Xingu, onde viveu e trabalhou durante doze anos. Peço e ela concorda em contar um desses ‘causos’ mirabolantes.
“Um índio foi pescar com seus dois filhos. Duas crianças – uma de seis e a outra de oito ou nove anos. O pai foi até a outra margem do rio, mas advertiu aos pequenos para que o esperassem ali onde estavam. Quando retornou já não estavam mais lá. O índio procurou, mas não os encontrou. À noite, desesperado, voltou à aldeia. No dia seguinte, várias equipes de índios saíram à procura das crianças, sem sucesso. Orlando chamou então o pajé, que garantiu que as crianças estavam bem e que voltariam, mesmo depois de terem passado vários dias, com chuvas e tempestades. Quase duas semanas após o sumiço dos garotos, o pajé fez uma cerimônia e depois afirmou que no dia seguinte, ao meio-dia, eles retornariam à aldeia. No horário previsto, pediu que todos ficassem em suas casas enquanto ele faria sua reza. Em seguida, como anunciado, as crianças voltaram. Não tem explicação”, conclui Marina.
Via Brasil de Fato.